Voyage.I
Escolheu um caderno de música. Barato. Porque tinha aquelas linhas de pauta que adorava e porque lhe parecia poético que tudo pudesse começar dessa forma infantil.
Voltara de férias e tudo a entristecia. Tudo lhe parecia complicado e difícil. Desde há anos que a ideia lhe crescia, mas agora sentia-se diferente. Tinha quase 30 anos, que é uma idade medíocre: é-se jovem para construir, mas não demasiado velho para desistir. Sabia que algo tinha mudado em si.
Regressar a casa não a destruiu, mas qualquer coisa se tinha insurgido irreversivelmente em falta permanente. Nem sequer condenava os que optavam por isto e amavam esta vida que têm - a ela tudo a começava a irritar. As luzes tornavam tudo demasiado brilhante, as demasiadas vozes transformavam o ruído, que nunca lhe tendo sido ag
radável era certamente suportável, num som desconexo, histriónico, insuportável; as roupas cuidadas e pensadas fazia-lhe parecer tudo ainda mais artificial. Estava cansada.
Nem sequer tinha que ver com uma busca mística por paz interior, mas tinha a certeza que qualquer coisa, na sua génese, se havia partido.
Ainda gostava de roupa, da ideia de usar uma peça nova e de se sentir bonita nela, mas desde então que nada lhe agradava por aí além, passava pelos cabides e era capaz de sair da loja sem vontade de comprar um lenço que fosse - aliás, entrar e sair de lojas agora aborrecia-a... mais que isso, enervava-a. Se pudesse, a partir de então, faria todas as compras pela Internet - até sorrir lhe doía, não encontrava motivos para isso. Nem é que a sua vida fosse um desastre absoluto, tinha um emprego que não lhe desagradava completamente (apesar do ordenado miúdo), um filho maravilhoso que a fazia rir como ninguém, e o companheiro que amava profundamente. Também não é que de repente se tivesse tornado misantropa - continuava a acreditar piamente que todas as pessoas eram merecedoras do seu respeito, que um sorriso num loja qualquer vale mais que muitas notas no bolso e sempre fizera questão de ser simpática, mesmo quando não lhe apetecia, porque sempre tinha considerado que nenhuma daquelas pessoas que a estaria a atender tinham culpa fosse lá do que fosse que a tivesse deixado mal-disposta. Mas agora o sorriso doía-lhe. Sentia-se pior pessoa - isto tudo estava a torná-la numa pior pessoa: mais mesquinha, mais irritada, menos paciente, pior.
O emprego não era difícil, nem sequer (para mal dos seus pecados) intelectualmente aliciante, tinha vários títulos (assessora de comunicação, especialista em relações publicas, secretária forense) mas na realidade não passava de uma assistente profissional numa firma de advogados onde apenas gostava das colegas - que eram simpáticas e bem dispostas e não tinham ares de superioridade, tratavam-na de igual para igual, apesar do titulo de doutoras. Os sócios não eram más pessoas, gostava bastante deles até, mas representavam, no seu âmago, aquilo que ela desde há muito principiara a odiar. Incomodava-a a titularidade, a superioridade baseada em estatutos abstractos, as conversas pouco fundas, o preconceito espelhado nas roupas, nos hábitos, na voz... o desconhecimento profundo acerca do mundo fora da esfera deles, dos que se debatem para colocar um prato de comida à mesa, para pagar as contas, com o ordenado sempre demasiado curto para o mês. Nem ela, que não era rica, poderia considerar-se pobre - seria até ofensivo dizê-lo. O incrível desconhecimento acerca da franja onde nem sequer tocam irritava-a e agora, após regressar, não sabia bem como lidar com tudo isso novamente, com este monstro a crescer-lhe na alma.
Tomou algumas decisões. Com um friozinho no estômago aceitou que segunda feira regressaria ao trabalho, mas que já nada seria igual. Voltaria, claro. Mas já lá não voltaria a estacionar. A sua vida era outra: deixara de ser, indubitavelmente, alguém com algo para onde pudesse sempre regressar - daí para a frente só poderia partir, nunca regressar e compreendeu que esse talvez tivesse sido o seu problema desde sempre: regressando achava que estava a partir, mas a partida levava-a de volta. Ela teria de deixar de voltar, regressar. Teria de, de uma vez por todas, começar a preparar a sua partida.
Assustou-se pela primeira vez ao chegar a esta conclusão, mas gostou. O primeiro passo estava dado: compreender onde estava o erro que cometia invariavelmente e de forma repetida há anos e anos. O segundo passo teria de ser aceitar que partir nunca seria sem dor e que uma grande dose de incerteza era a maior certeza que poderia ter - até que ponto estava preparada para essa incerteza? Mais que a espiritual, aquela do prato na mesa, das contas pagas, do ordenado não chegar ao final do mês. Seria possível fazê-lo sem que a julgassem doida e irresponsável? E se tudo corresse mal? Por onde começar?
Partir seria certamente a maior aventura da vida.