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pânico incontrolável | uncontrollable panic

Merda. Esqueci-me do livro no escritório. Esqueci-me dos phones em casa. "The Atlantic" salva sempre o dia.

Percorro alguns títulos, quero ler todos mas, como em tudo, há a filtragem necessária: tempo. nível de capacidade de concentração. cansaço.

pânico incontrolável

Acabo por escolher um artigo que já tinha guardado há algum tempo nos favoritos, "para ler mais tarde": porque não dá para tudo. porque o tempo não chega. porque a vidinha nem sempre deixa - "Why Happy People Cheat", de Esther Perel. Tema de primeiro mundismo, mas sensível. intemporal e histórico. Como a própria autora indica, "adultery has existed since marriage was invented". Há temas que preferimos esquecer: mortes. medo. paranóia. guerra. traição. coisas igualmente intemporais mas que nos recordam o mundo, tal como ele é, sem enfeites. Regresso a eles tanto quanto posso, à maioria, porque me apavora não estar cá, não saber o que é estar cá, correr o risco de me esconder na bolha para que aquilo que há para lá dela não me venha inquietar. Mas o tema traição, por algum motivo - que agora vou percebendo qual é, tem permanecido na gaveta das coisas "às quais não quero ir". Porque o machismo e o chauvinismo que abomino também cresceram comigo e mesmo combatendo-o, ele está em mim como uma memória - e as memórias, aquelas mesmo à séria, não se varrem para baixo do tapete à espera que desapareçam, estarão sempre lá - mesmo quando decidimos não olhar para elas: inquisidoras e ameaçadoras.

Aprendi que a traição é errada. A infidelidade. A deslealdade. De toda a espécie. Aprendi, mesmo sem me "ensinarem", que a grande História foi escrita em torno de homens traidores porque podiam sê-lo. porque, coitados, iam para as guerras, anos infinitos sem a mulher, e a natureza é o que é, as necessidades são o que são. aprendi que os homens são mais animais que nós, as mulheres. e que isso justifica muita coisa: guerra. traição. abandono.

Aprendi que os homens podem viajar sozinhos: porque são fortes, robustos (que as mulheres também podem, claro, mas por sua conta e risco, porque já se sabe que é um perigo sair porta fora com a feminilidade estampada no corpo, sem uma boa dose de masculinidade a proteger os flancos.

Aprendi, também, que a maravilhosa modernidade nos concedeu o amor romântico. Que se antes as uniões ocorriam de forma instrumental, hoje somos absolutamente livres na nossa escolha, que podemos até "experimentar" antes, de modo a podermos tomar uma decisão em maior consciência (desde que eventualmente a tomemos, claro!). que escolhemos A pessoa da nossa vida com base no conhecimento, reconhecimento e concordância de que aquela pessoa É a melhor pessoa para nós: estudámo-la. tacteámo-la. e no final, decidimos com borboletas no estômago, que queremos passar o resto da vida com ela. Aprendi que temos essa escolha - mas que devemos mantê-la, e que, por a termos tomado em consciência, ela só pode correr bem. afinal de contas, agora sim, na Era Dourada dos Relacionamentos, A pessoa que escolhemos contém em si (ignoramos o quão pesada é esta responsabilidade) "stability, safety, predictability, and dependability (...) awe, mystery, adventure, and risk (...) comfort and edge, familiarity and novelty, continuity and surprise (...): We have conjured up a new Olympus, where love will remain unconditional, intimacy enthralling, and sex oh so exciting, with one person, for the long haul."

Não escrevo isto de forma ligeira. Acredito piamente neste último parágrafo: todas as histórias me contaram, sempre, esta mesma história. e eu aprendia-a de-cor-e-salteado. A velha história do: tudo é eterno enquanto dura, é uma verdade-absolutamente-verdadeira - racional, até! mas poucos crêem realmente na velha máxima. queremos ser libertários (não libertinos), asseverar que o importante é a forma como vivemos o agora, e que teremos sempre Paris: mas é um delírio - na verdade, queremos com todas as nossas arestas, e vértices, e manias, e taras, e osso, carne, veias, que seja eterno. só.

Esther Perel compreende tudo isto. Acredita nisto, até. Mas arrisca um ponto de vista que ninguém quer ver: nem mesmo eu. agora. depois de ler o artigo, de reflectir acerca dele, de me comprometer a escrever sobre ele.

Primeiro, o primeiro.

Esther começa pelo perigo, pela burrice cabal contida nesta teoria: a ideia, também ela histórica e intemporal, de que a perfeição existe e que é alcançável. a pessoa perfeita. a relação perfeita. a categórica e insustentável responsabilidade que é sermos perfeitos. Falha nº 1: não somos. E até aqui, todos parecemos aquiescer - serve inclusive de justificação para pequenos deslizes, erros de julgamento, atitudes menos agradáveis: não somos perfeitos, temos autorização oficial e unânime para errar.

E erramos novamente, ato contínuo e circular, ao julgar que, apesar de NÓS não ser-mos perfeitos, O outro é. Tem de ser. Afinal, escolhemo-lo precisamente devido a essa característica.

A autora aponta, depois, o ponto que mais revolta provoca no centro de toda a questão da traição: What if the affair had nothing to do with you? (lendo-se no you, a pessoa traída)

Quando a traição se dá, por muito dolorosa que seja para o traído, a única explicação aceite é a de que o problema está num de dois sítios: na relação, ou na pessoa. e a culpabilidade instala-se: no traído e no traidor.

É neste ponto que me, num passe de mágica, salto para outro artigo: Inside the Growing Movement of Women Who Wish They'd Never Had Kids.

Porque se mesclam estes dois artigos? Porque a maternidade é outra dessas intemporais histórias acerca da perfeição. a mãe perfeita. a/o filha/o perfeita/o. o casamento perfeito que gera pais perfeitos e rebentos perfeitos. a casa nos subúrbios, com a família perfeita. a perfeita epítome da modernidade.

Ao ler este segundo artigo, como é do meu apanágio, não consegui resistir à leitura da caixa de comentários - é sempre um erro crasso, já que me enfureço, aborreço, inquieto com o que leio. Previsivelmente, a cabal maioria, era de descrédito, julgamento, horror e consternação, perante tal sacrilégio. que mães aquelas, que espécie de gente aquela, que era capaz de verbalizar uma afirmação destas: arrependimento perante a benção da maternidade.

dois pontos acerca desta questão: o retorno à velha história do homem-todo-poderoso que pode tudo e a quem tudo se desculpa: a traição. a violência. a promiscuidade. o abandono. quantas narrações conhecemos acerca de homens que abandonaram as familias, que não querem saber dos filhos, que, mesmo estando na mesma habitação, lhes concedem (às crianças) um saldo negativíssimo de atenção? e quantos desses homens são, realmente (peço que se considere aqui com toda a seriedade a palavra "realmente") crucificados por essas atitudes? uma quantidade ridiculamente reduzida.

zangamo-nos, hoje, com as mulheres que traem ("elas agora são piores que eles!"), com as mulheres que colocam a carreira em pé de igualdade com a familia ("claro que as mulheres devem trabalhar, mas as crianças precisam das mães!"), com as mulheres que - pasme-se - abrem mão da custódia parental em prol do progenitor, ou sequer aceitam, sem dar luta, a guarda partilhada (a minha mãe sentiu-o na pele). nunca nos zangámos tanto com os homens como hoje nos zangamos com as mulheres. igualdade camuflada. outro delírio. outra ilusão.

o segundo ponto onde quero tocar, e que se cruza com o primeiro artigo, tem que ver com a incapacidade que temos em aceitar que, numa única vida, só temos um certo nº de possibilidades, e o quanto isso nos revolta. há a obrigação, também bem vendida em comerciais, de sermos ilógicamente felizes (os tais perfeitos). de, tal como nas relações, termos o pacote completo: a carreira, a familia, a segurança, a aventura, a diversão, o mistério, a responsabilidade, a casa paga e o bilhete de avião no bolso - tudo em simultâneo. lamentavelmente, não é, humanamente, possível - pelo menos, não para todos. e claro, a frustração aplaca.

escolhemos (quando temos sorte de podermos escolher) a profissão. escolhemos A pessoa (quando temos a sorte de ela também nos escolher a nós). escolhemos a casa dos sonhos (quando o - demasiadas vezes - parco ordenado o permite). escolhemos quando (quando não há acidentes) queremos ter filhos, e quantos queremos ter (quando temos a fortuna de não sofrer nenhum problema de saúde que o impeça). e depois de todas as escolhas, na preponderante parte das vezes, desaparecemos. não nos-somos, não nos-reconhecemos. compreendemos que escolhemos muito pouco. compreendemos que, pelo menos, não o escolhemos em real consciência. que é o tempo, a vidinha, que vai escolhendo por nós. a sociedade. o que esperam de nós. o que nós achamos que esperamos de nós.

e é por isso que traímos. e é por isso que nos arrependemos de sermos mães.

porque o hiato entre a realidade-real e realidade-expectativa é abissal. porque a grande História nunca foi feita de pessoas perfeitas, nem de estórias perfeitas. Porque para a única verdade é a de que o tudo não é razoável, nem passível.

entre todas as escolhas que a modernidade nos disse que podíamos fazer há um senão: o de que, no meio de todas elas, não existira espaço para sermos tudo o que queríamos ser.

Não seremos as/os companheiras/os que agregam, sempre, a loucura, a paixão, o amor indebatível, o mistério das novas descobertas, a segurança do outro, a estabilidade conjunta, ou as mães/ os pais que incorporam a ternura permanente, a paciência inesgotável, o entusiasmo estriónico a cada pequena descoberta - com as noitadas até às quinhentas, as manhãs na cama que invadem a tarde, o ócio de estar só quieta a olhar para o nada durante 3 horas seguidas, a aventura de largar tudo e ir viajar o mundo, a liberdade de experimentar e errar várias profissões.

Por mais paradoxal e contraditório que possa parecer, a modernidade vendeu-nos a ode ao "eu", mas o "eu" completo, pleno, nunca existiu. ou existirá.

Continuaremos a trair. a arrependermo-nos de sermos mães/pais/amigos/irmãos/filhos/arquitectos/advogados/empregadas da limpeza/secretárias/artistas/... e o problema não está no outro: na/o companheira/o, na/o filha/o, mas em nós... na nossa necessidade tão-somente-humana mas tão-cabalmente-impossível de sermos tudo-em-um.

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