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Manifesto.


maternidade.

A tua existência precoce resistiu a todas as improbabilidades.

Esta é uma frase à qual me remeto outra e outra vez, desde que fui mãe. Não me recordo de quem a escreveu, sei que a li muito antes da maternidade fazer parte da minha vida, e desde então que retorna vezes sem conta aos meus pensamentos.

Como em tudo, tenho quase a certeza de que, onde quer que a tenha lido, não foi associada sequer à maternidade, mas a um amor perdido qualquer que chegou cedo demais e se deixou ficar agarrado à pele. a um mês qualquer de janeiro. porque todos os meses de janeiro me sabem a amargo, a sofrido dorido, a qualquer coisa a que resisto, mesmo avessa às maiores improbabilidades. nada que ver, portanto, com a maternidade.

desde que o fui - mãe - que o conceito me transcende. tanto me enternece, como me aterroriza - e as provações foram sempre mais que muitas e, a minha própria existência nesse estado, é algo que resiste, improvável.

Ser-se mãe com dezanove anos não é um plano de vida - não para mim. Sendo o mais honesta possível, ser mãe, não era de todo um plano de vida. Com todo o nível de imaturidade de que, naturalmente, me revestia, tinha um massivo grau de consciência quanto às agruras (muito mais que os encantos) dessa condição. Desde cedo que me conheci demasiado bem, conhecia os meus limites e odiava-os. Ao mesmo tempo que sempre me entreguei apaixonadamente às pessoas, é certo que essa paixão se forrava de um alheamento monstruoso. Sendo importante o toque da proximidade dos meus mais próximos, era-me vital a dispersão e, invariavelmente, a minha história é uma história de afastamentos e contam-se, provavelmente pelos dedos uma mão, aqueles que permanecem intocáveis - aos outros reservo-lhes o lugar onde eu sei que podem sempre regressar, porque as suas histórias, para mim, nunca têm verdadeiramente um fim. Agarro-me à antiguidade como um polvo e tê-los ali (aí) é-me de um conforto imenso. Sempre compreendi, apesar de ter uma vergonha-negra de o admitir, que tudo aquilo que eu sinto em demasia (tudo) está coberto pelo chapéu do egoísmo.

Nunca fui capaz de tratar fosse quem fosse de forma instrumental, mas sempre pude compreender que o meu toque-e-foge assim o pudesse parecer. Lutar contra isso, com o tempo e os anos, deixou de ser uma opção. Sou uma nódoa, sei-o.

Por este, e outros motivos, é óbvio que sempre soube que a maternidade não poderia uma escolha - hoje, depois de ser mãe, sei-o ainda com mais clarividência: as pessoas como eu, avulso, correm sérios perigos quando se comprometem vitalíciamente.

ser mãe, portanto, foi uma descoberta mais descoberta que para muitas mulheres que conheço. fui invejando, ao longo dos anos, aquelas mulheres para quem a maternidade lhes ressoa dos poros, a facilidade da entrega.

Achei, e foi-me dito, vezes e vezes sem conta, das mais variadas formas, de modo mais directo ou encapotado pelo convencional e politicamente correcto, que ia falhar. Esperaram, portanto, que falhasse, e dia após dia, as minhas acções foram questionadas, apontadas, examinadas, julgadas, etiquetadas. é sempre demasiado tentador etiquetar as pessoas que erram muito, como eu; que tropeçam vezes demais, como eu; que estando absolutamente aptas para a vida em sociedade, são capazes das mais recambolescas proezas provando a sua inadaptabilidade permanentemente, como eu. eu própria, demasiadas vezes, não resisto a essa tentação: a rebelde, a difícil, a irresponsável.

E agora, como é que essa pessoa se harmoniza com essa grande, regular, responsável e portentosa palavra: mãe.?

onde é que eu fiquei, depois da maternidade. em que espaço? com que espaço? com espaço?

Os primeiros anos foram uma mina permanente, um conflito imorredoro do qual por pouco fui sobrevivendo. não porque odiasse ser mãe, não porque não me revisse naqueles olhos grandes cheios de esperança, e vida, e futuro, que todos os dias me olhavam com encanto; mas porque esses olhos me contavam uma história da qual pouco, ou mesmo nada, sabia. enquanto tudo em torno me queria passar a perna, tirar-me o tapete debaixo dos pés só para me ver cair e poder dizer: eu avisei-te, eu sabia que não serias capaz, lembra-te sempre da tua irreversível imaturidade, irresponsabilidade, incapacidade. mesmo os que mais me amavam - e se amaram! e se amam! - lia-lhes sempre nos gestos esta secreta esperança - um passo em falso e o mundo ganhava. as estatísticas ganhavam, eu tornava-me um numero, outra vez. de circo, daqueles que fazem rir por pena, que fazem chorar por condescendência.

Estou aqui, passados nove anos, e ainda hoje me olham com desconfiança - me julgam os actos. ainda hoje me olho ao espelho e me vejo pequena e, tantas vezes sem força, quase a acreditar neles: na professora do meu filho que, quando o meu filho levou biscoitos feitos por mim e por ele para a escola, devolveu um bilhete a agradecer à avó; na pediatra do meu filho, que durante anos, nas consultas, se dirigia à minha mãe, e não a mim; na monitora de um workshop que fiz com o meu filho, que me tratou o tempo todo como se eu fosse a mana mais velha, que giro, que tinha paciência para ir com o mano mais novo a "estas coisas", enquanto os pais, coitados, tinham de arranjar tempo para eles, sem os "putos" a chatear; no "amigo" que se espantou demasiadamente quando fui sair e apanhei uma bebedeira e tive o desplante de deixar o meu filho aos cuidados da avó durante a noite; no tipo com quem estive e com quem achei que podia criar uma relação amorosa e que me disse, sem rodeios, que eu seria perfeita se não tivesse um filho; na minha mãe, com a maior das boas intenções, que julgou ter, a certa altura, o direito de passar por cima das minhas decisões educativas; no meu pai, condescendente, com quem durante anos, até então, tinha conversas profundíssimas até altas horas da noite, que de repente começou a julgar que, comigo, já nada de interessante poderia haver para tertuliar porque, além de ter sido estúpida, inconsequente e irresponsável, agora pertencia a esse grupo que aborrece até perdermos a consciência que são as mães...

E como não? Uma pesquisa básica num qualquer motor de busca online, quando pesquisada a palavra maternidade, devolve os resultados cimeiros com "o que trazer para a maternidade"; "conselhos para mães de crianças difíceis"; "as melhores receitas para as melhores mães" e umas quantas frases da bíblia... Somos isto, nós, mães, reduzidas a uma existência hermética, enfraquecida, pequenina, com ambições pequeninas e vidas pequeninas, para quem a maior alegria, todos os dias, é imaginar o futuro risonho dos nossos filhos, as actividades extra curriculares que lhes devemos oferecer para os estimular física e intelectualmente, os melhores bolos para o fim de semana; os melhores sítios ao ar livre onde planear as melhores festas de aniversário - e onde ainda oferecem um brinde a cada convidado (e um pavilhão cheio de gritos, musica em loop que torna passivo o mais histérico dos seres, tal a violência e os decibéis)...

Como não sermos só desinteressantes? De segundo plano?

Andei a pensar nisto, quando decidi, pela quinquagésima vez, criar um blog, onde é requerido que digamos quem somos, para que os nossos futuros leitores nos conheçam um pouco melhor. A tentação de mentir foi muita: quem é que quer saber o que escreve, ou deixa de escrever, alguém de quem nunca ouviram falar e que, ainda por cima, é mãe? Parece dolorosamente maçador. Olhando de fora, abstraindo-me de mim, é. É de cortar à faca os níveis de desinteresse possíveis num blog escrito por alguém que, entre outras coisas, diz de si que é mãe, e isso basta para fazer desaparecer tudo o resto.

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